No dia 24 de setembro de 2014, o Brasil perdia um dos mais notáveis pesquisadores em doenças tropicais e negligenciadas. Luiz Hildebrando Pereira da Silva, o professor Hildebrando, que chegou a integrar o grupo de pesquisadores do Instituto Pasteur em Paris, decidiu mudar-se para Rondônia, no fim da década de 90, atraído, principalmente, pelo desejo de fazer pesquisa.
Aqui, montou um grupo de jovens pesquisadores, inicialmente, para estudos sobre malária, mas aos poucos seus interesses voltaram-se a outras doenças como as hepatites virais e arboviroses.
O seu engajamento com as questões sociais possibilitou a criação do Centro de Pesquisa em Medicina Tropical (Cepem), instituição dirigida atualmente por Mauro Shugiro Tada, que também dedica-se a estudos sobre malária, e conviveu com o professor Hildebrando, por mais de três décadas.
Nesta entrevista, Mauro Tada faz um registro da breve passagem de Luiz Hildebrando pelo estado de Rondônia, e fala sobre o legado deixado pelo pesquisador aos povos da Amazônia e à saúde pública no Brasil.
Quem foi Luiz Hildebrando Pereira da Silva?
Mauro Tada: Bom, essa é uma pergunta, inclusive, com várias respostas. O professor Luiz Hildebrando Pereira da Silva foi um pesquisador, um cientista do mais alto gabarito que nós tivemos, e que também além das questões científicas e técnicas, tinha toda uma maneira de ser, de trabalhar e tinha os seus ideais, tanto profissionais, quanto políticos e sociais. Então, se nós tivermos todos esses parâmetros seria uma pessoa, que não apenas gostaríamos de segui-la, por causa de suas ideias, seus princípios, a sua moral, e a sua ética, mas também por conta do seu conhecimento, pois ele era uma pessoa extremamente inteligente, com vários ideais.
E esses ideais o guiavam, inclusive, no momento em que ele via as pessoas com grandes problemas de saúde, e às vezes a impossibilidade e a incapacidade dos gestores de atuarem sobre esses tipos de problemas. Então, a pesquisa fazia com que esses gestores tivessem armas para poder controlar essas doenças. Esse é um dos princípios básicos que a gente deve levar em consideração, o que a ciência pode fazer por nós.
Outro ponto a ser mencionado é a maneira pela qual ele levava as coisas, sempre até as últimas consequências, mas era pelo fato de que ele não desistia nunca de um ideal, de um objetivo, e isso era fantástico, porque produzia na gente uma certa confiança em todas as ideias que ele arquitetava.
Tudo aquilo que ele começava a projetar nós tínhamos a segurança de apoiá-lo, de segui-lo, de aprender com ele. A gente realmente sabia que conseguiria alcançar os objetivos. E isso é fundamental dentro do que nós podemos destacar sobre quem foi essa pessoa chamada Luiz Hildebrando Pereira da Silva.
A sua vinda para Rondônia, na segunda metade da década de 80, ocorreu num período em que a região possuía um dos maiores índices de malária do país. A sua mudança para o estado foi uma escolha?
Mauro Tada: Sim, esse foi um dos fatos que me trouxeram para Rondônia. Eu fazia parte dos trabalhos do professor Aluízio Prata, que era chefe do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade de Brasília (UNB), e eu, desde estudante, sempre estive com ele e trabalhei com pesquisa dentro do Núcleo. Quando conclui o curso de Medicina, depois de algum tempo, o professor Aluízio Prata queria trabalhar com malária na região amazônica, e uma das situações que fizeram com que a gente viesse para Rondônia, foi que havia um convênio de várias instituições, inclusive, com o Instituto Walter Reed, que era conduzido, na época, pelo Exército Americano e que trabalhava em pesquisas sobre malária. Então, havia um interesse muito grande em trabalhar com malária na região, e nós viemos por meio de um convênio com instituições brasileiras e internacionais. Escolhemos Costa Marques em Rondônia, porque o município tinha a maior incidência de malária no país, o que já configurava uma situação totalmente ímpar, além de ser uma cidade isolada.
Veja que nós tínhamos uma cidade (Costa Marques), que fazia divisa com a Bolívia, totalmente isolada em vários períodos do ano, na época de chuva, por exemplo, você não tinha acesso terrestre, era somente por via área ou por barco, acessando o município de Guajará-Mirim, e que apresentava uma incidência de malária extremamente alta, em decorrência de uma migração muito recente, naquela época, através da BR 429 que ligava Presidente Médici a Costa Marques.
Observe que nós tínhamos todo esse perfil geográfico e epidemiológico que interessava para estudos da malária no Brasil. Outro fator foi preparar uma área que foi posteriormente testada pela doutora Margarita Urdaneta, do Núcleo de Medicina Tropical da UNB, para trabalhar com a vacina num projeto do pesquisador colombiano Manuel Elkin Patarroyo. Com isso, nós montamos uma área na região e conseguimos permanecer durante quatro anos. Conseguimos estudar bastante a parte do perfil epidemiológico e depois foram realizados os testes da vacina pela doutora Margarita, com um grupo de pesquisadores de Aluízio Prata e colaboração de cientistas como o professor Luiz Hildebrando, Erney Camargo e Marcos Boulos. Havia então um grupo de pesquisadores de várias instituições brasileiras que integravam um conselho a respeito dessa vacina, que infelizmente não apresentou os resultados que nós esperávamos. Essa foi a primeira e a última vacina contra a malária a ser testada no Brasil, desde então.
É neste contexto que acontece o seu encontro com o professor Luiz Hildebrando?
Mauro Tada: Na realidade, foi quando eles vieram para formar um centro de excelência com a colaboração da Universidade de São Paulo (USP), por meio de um acordo com o estado de Rondônia. Na época, nós já contávamos com o Centro de Medicina Tropical (Cemetron) e, posteriormente, passamos a contar com o Centro de Pesquisa em Medicina Tropical (Cepem), um anexo ao Hospital Cemetron. Quando ele chegou a Rondônia, já tinha uma ideia de como seriam feitos esses estudos epidemiológicos em Porto Velho, pois havia a possibilidade de encontrar perfis epidemiológicos diferentes daqueles encontrados fora do estado de Rondônia, e em outras áreas da Amazônia.
E foram muito bem estudadas as características da malária, em períodos de seca, em período de chuva, em populações ribeirinhas e de migrações recentes. Todos esses perfis epidemiológicos foram descritos na época pelo grupo. No caso específico em que eu estava em Costa Marques, no período inicial a gente definiu uma série de projeções um pouco diferentes, porque nós tínhamos uma população diferente da capital, que era uma cidade de conexões, em comparação a Costa Marques, caracteristicamente marcada pelo isolamento.
Eu me lembro que nós tínhamos a estrada que ligava Manaus a Porto Velho, que permaneceu por quase 10 anos, e havia esse fluxo frequente entre as duas cidades, além da possibilidade de acesso a outros países como Peru e Bolívia. Havia então a necessidade de estudarmos como a malária era transmitida numa área como essa em que nós estávamos, por isso investigamos praticamente todos os perfis epidemiológicos que conhecemos hoje no país. Eles foram muito bem definidos não só aqui, como em Manaus também, mas houve um estudo muito bem executado na cidade de Porto Velho pelo grupo do professor Luiz Hildebrando.
Olhando para o passado, quais avanços no conhecimento da malária podem ser destacados como resultado desse trabalho realizado em Rondônia, ao lado do professor Hildebrando?
Mauro Tada: São vários avanços, não só apenas a pesquisa, mas também na área de formação de pessoal qualificado. No caso da equipe da qual fiz parte durante 15 anos, de forma efetiva, havia sempre muitas perguntas, comuns quando se investiga alguma coisa. Dentro desse contexto, nós observamos que a grande colaboração do Hildebrando foi na parte do entendimento da disseminação da malária no Brasil. Foi nessa época que conseguimos provar a presença do portador assintomático da malária, o que mudou consideravelmente as estratégias de controle e de eliminação da doença.
Esses foram eventos que possibilitaram um melhor entendimento sobre a malária, como ela é transmitida no Brasil e como ocorre a sua disseminação. Até então, nós conhecíamos que a sua transmissão estava relacionada aos grandes movimentos migratórios mais recentes, situações comuns em que se registravam surtos de malária, além de outros fatores de transmissão ligados aos períodos de chuva e estiagem na região.
No entanto, com a descoberta dos pacientes assintomáticos, você muda as características de controle, porque agora nós tínhamos que saber qual era a importância disso. Então o professor com sua equipe detectou a possibilidade de transmissão da malária do paciente assintomático a outras pessoas. Na realidade, o assintomático, uma pessoa que aparentemente não tem nada, e de repente torna-se um reservatório significa que ele pode estar transmitindo a malária frequentemente, porque o mosquito quando pica esse portador, irá transmitir a doença a outras pessoas.
Essa foi a situação nova que nós encontramos. Rondônia, nesse sentido, tem uma colaboração extremamente importante, até o próprio Ministério da Saúde entender que havia algumas modificações nos perfis epidemiológicos e também nas características de controle, consequentemente mudaram-se as formas de controle vetorial e de tratamento da malária.
Os últimos anos de vida do professor Luiz Hildebrando foram dedicados ao fortalecimento e consolidação da pesquisa na Amazônia. Considerado a sua trajetória ao lado deste pesquisador, qual registro o senhor gostaria de fazer sobre o legado deixado por ele à ciência brasileira?
Mauro Tada: Eu não poderia citar uma só, porque não seria real, não seria verdade. Veja bem, ele se aposentou e veio para Rondônia, uma situação inversa da maioria das pessoas, que se aposentam e não saem do lugar em que se aposentaram. Ele passou a ter a terceira parte da vida dele de forma extremamente interessante. Ele veio viver algo que sempre quis fazer, estar no meio daquilo que queria fazer, das suas pesquisas.
Ele deixou aquela parte burocrática, que fazia como diretor de um departamento no Instituto Pasteur em Paris, para ser um pesquisador de ponta, porque era o que sempre considerou importante e fundamental. E com isso, ele passou para todos nós a importância que tem um pesquisador de campo e a integração desse pesquisador com as pesquisas de laboratório. Ele nos ensinou que é possível avançar de uma pesquisa básica, para uma pesquisa clínica de forma ininterrupta, de maneira que podemos transformar aquilo que idealizamos, dentro de um laboratório, em algo que possa ajudar na saúde das pessoas, na prática.
Isso fez com que o professor concentrasse esforços nas perguntas fundamentais em como eliminar uma doença, buscando os meios necessários e estrutura adequada aproveitando recursos e condições do próprio ambiente. Essas foram ideias transmitidas pelo professor Hildebrando, a moral, a ética, a importância que tem a pesquisa e que a gente faça pesquisa de forma real, de forma metodologicamente muito bem executada.
Além disso, as ideias novas que ele trazia. Ele acreditava que não havia nenhum empecilho para fazermos pesquisa, e nós passamos a acreditar nisso também, na possibilidade de fazermos pesquisa sem que o mundo nos olhasse de forma diferente. Foi isso o que aconteceu, e esperamos que com essa semente plantada a gente continue a produzir dessa forma, a gente sobreviva.
Texto: José Gadelha
Fotos: Acervo Fiocruz Rondônia